Conheça a GEMA – o começo do fim da cultura da noite de Berlim

Berlim, um domingo qualquer à noite: a festa que começou na 6a feira segue no auge. Sobre a pista, um zoológico de espécies coloridas dança de dentro para fora, imerso na música; em meio à nuvem de som hipnótico, glitter e fumaça, bailam juntos simpáticos locais, deslumbrados turistas, hipsters de topete desmanchado, gays esvoaçantes e punks desdentados – sem julgamento mútuo. Alguém resolve plantar bananeira num canto da pista. Lá fora, outro tira a roupa e, sem titubear, pula no rio, enquanto a mixagem do DJ provoca um desafinado grito. Não existem seguranças para cortar o barato alheio. Os limites são inexistentes e mesmo assim não existe briga; tudo se passa num ambiente de extremo e confortável hedonismo. Não há a menor pressa ou preocupação em ir para casa, pelo contrário… quanto mais voam as horas, melhor fica a atmosfera.

O que diferencia Berlim de qualquer outra cidade do planeta é o fato de que nenhum bar ou clube tem data ou hora pra fechar. Todo e qualquer estabelecimento tem autonomia para, simplesmente, decidir quando apagar a luz. E enquanto há energia na pista, vai que vai – o Bar 25 (legendário clube), no seu baile de encerramento, permaneceu aberto por 10 dias seguidos e a todo vapor.

Tamanha liberdade que tem razão de ser: provavelmente o lugar com a história recente mais conturbada do planeta, Berlim é o epicentro nervoso que destruiu o mundo duas vezes apenas no último século e, não bastando, atravessou na sequência um período de trevas, aprisionada por detrás do muro cinzento. Mas tamanho sofrimento ininterrupto recompensou: depois da queda do muro, em 89, o oprimido contexto virou naturalmente do avesso; juntamente com o alívio e sensação de reunificação coletiva, veio a música Techno, os squats, a Love Parade e uma explosão contínua de acontecimentos festivos, desencadeando um momento histórico que todos os alemães descrevem como “mágico” e reconfigurando essa sociedade desgastada pela brutalidade em uma nova ordem extremamente livre e tolerante, que permanece intensamente até hoje.

Não há na galáxia uma cultura noturna tão viva e intensa como em Berlim. Todos os dias do ano, gente da Europa e do mundo se auto-catapultam para experienciar a capital mundial da música eletrônica. Costumo dizer que é o lugar mais próximo que já estive do paraíso. Toda aOstberlin, a área leste da cidade – ex-parte comunista – poderia ser tombada pela UNESCO, tamanho o número de discotecas extra-sensoriais por quilômetro quadrado. Mas este cenário cintilante da contemporaneidade está na iminência de tombar – só que literalmente.

A sigla GEMA é um verdadeiro palavrão que significa „Gesellschaft für musikalische Aufführungs- und mechanische Vervielfältigungsrechte” – algo como “Sociedade para a realização musical e direitos de reprodução mecânica”. É a entidade que fiscaliza bares e casas noturnas e cuida dos respectivos direitos autorais.

Garantir que os artistas e compositores sejam pagos pela reprodução de seu trabalho é, sem dúvida, bem justo. Mas claro que não é bem isso que acontece na prática. Onde deságua essa grana?

No ano passado, a GEMA obteve um lucro de 863 milhões de euros; destes, 735 foram destinados aos artistas e 127 para o próprio bolso, dividido em apenas 1000 empregados. Os 3 chefes do negócio – Harald Heker, Rainer Hilpert e Georg Oeller – receberam, cada um, €484.000, 332.000 e 264.000, respectivamente.

O restante da bolada? A distribuição do lucro é proporcional: quanto mais vezes tal música é reproduzida, mais ela ganha. Pequeno exemplo:

Para uma banda desconhecida e iniciante, o promotor do evento desembolsou 500 euros para a GEMA. Destes, no máximo €50 vai para a banda. Os outros €450 vão para um imenso caldeirão de profundezas divisíveis, canalizados para recompensar os produtores e bandas dos verdadeiros hits; aqueles que estão na rádio, nos clipes e nas paradas de sucesso. Ou seja: dos 65.000 artistas membros da GEMA, apenas 3.400 têm representatividade e encabeçam a lista de quem é verdadeiramente recompensado.

Em tempo e para deixar claro: a GEMA não é uma autoridade governamental, mas uma associação privada monstruosa, que faz o que bem entende com os direitos autorais alemães. Já era detestada. Sem acordo “interessante” para eles, vetou muitos dos vídeos do Youtube e o site Grooveshark. Mas agora, ao que parece, perdeu os escrúpulos de vez.

A reforma tarifária, que entrará em vigor no dia 1o de janeiro de 2013, terá um abrupto reajuste de 400 a 1.400% para discotecas e entre 1000 e 3.500% para bares com música ao vivo (isso mesmo). Será calculada a relação entre a superfície do bar/clube (em m2), o valor da entrada e a quantidade de horas que permanece aberto. Na prática: segundo o cálculo da DEGOHA (associação de hotelaria e gastronomia), uma discoteca “normal”, de tamanho médio, passará dos anuais €28.000 para €172.000. O Rauschgold, pequeno e divertido bar undergroundaberto ininterruptamente aos finais de semana, passará de €1.800 para €22.000. Já o Berghain – templo do Techno, unanimemente o melhor clube do mundo – será “promovido” de €30.000 para €300.000 anuais.

Não cabe aqui entrar em detalhes pois o cálculo do reajuste é complexo e depende de muitos fatores, mas o fato é este: a GEMA, não satisfeita com o já astronômico lucro anual, sente-se repentinamente no direito de promover um singelo aumento a si mesma. O veredito final é óbvio: tal preço é impagável.

Se esta reforma tarifária surrealista entrar em vigor (a tendência por enquanto: SIM), o impacto será destruidor: a grande maioria dos clubes e bares de toda a Alemanha serão obrigados a fechar suas portas. Os que restarem terão de encarecer desvairadamente seus preços para compensar (atualmente, em Berlim, o preço máximo da entrada gira em torno de €10 e a cerveja €3 – pós-GEMA, custaria ao menos o dobro disso). E a sociedade como um todo será afetada. Calcula-se que 100.000 empregos serão perdidos. O turismo vai despencar. Clubes ilegais surgirão em becos longínquos. A polícia vai enlouquecer. E a mágica atmosfera colorida de liberdade… evaporar.

Na Alemanha, não se fala em outra coisa: o povo está ciente da iminente catástrofe natural e a entende como um absoluto insulto, uma insanidade sem tamanho em forma de tsunami anunciada que, se alcançar a costa, irá varrer qualquer vestígio de purpurina das cidades. Associação de clubes unida, party people feroz. O clima por aqui é de comoção coletiva gritante. Todo mundo deste lado da mesa sabe bem que o futuro de toda uma era está em jogo. Sim, manifestações mil e um verdadeiro estardalhaço acompanham proporcionalmente o caso. Mas como sempre, na história da humanidade, a brutal arrogância de alguns poucos porcos abastados remodela a história com a ordinária ignorância de quem nunca irá passar um domingo legendário numa pista de dança.

Para quem pensava que injustiças absurdas são exclusividade do 3° mundo, vai aqui a prova maior. Ao perceber que ninguém para além das fronteiras germânicas entende o que está acontecendo – e bem pior, suas consequências – resolvi soar o gongo. Visto que você, precioso leitor, é sólido e chegou firme até aqui, é a hora de dar a sua força a favor da corrente.

A petição anti-GEMA online é em alemão, mas garanto que não precisa entender necas pra conseguir assinar (ou apertar o mágico botão do Google tradução). Não se assuste com o conteúdo abstrato. Basta o mínimo de perseverança pela causa e seguir os seguintes descompassos:

0 – Clicar à direita, na caixa cinza: “Petition mitzeichnen” (assinar a petição)
1- Como obviamente você nunca se aventurou por estas bandas antes, clicar: “Ich bin neu hier” (sou novo aqui) – e passar por aquele breve processo de preencher seus dados e confirmar depois através do seu e-mail. Note que pouco importa o que você preencher – pode até inventar nome, rua e etc – essencial é completar o processo até conseguir clicar na caixa cinza lá embaixo.
(Detalhes: “PLZ” = CEP. “Straße, Hausnr.” = Endereço e número da casa)

Vai lá:

https://epetitionen.bundestag.de/petitionen/_2012/_08/_28/Petition_35441.mitzeichnen.html

Que a força esteja convosco e que a GEMA só receba mesmo… uma chuva podre de ovo! Cenas dos próximos capítulos a reverberar desbundantes. Vamos com tudo, para o alto e avante!